Hemingway e Garcia Márquez
Quando ainda era criança queria ser escritor, nem
sabia o que era literatura e falava de literatura... Foi nesta fase de minha vida que o pai de um amigo
me emprestou uma grande quantidade de livros de Humberto de Campos, não sei
quantos; lia um, devolvia e recebia outro... Este cidadão há muito falecido
também me fazia ouvir bossa nova, que eu nem sabia o nome...
De Humberto de Campos não lembro nada do que li,
acho que nem entendi aquelas coisas de adultos. Ele já foi muito lido, suas
crônicas faziam um enorme sucesso, hoje é um escritor esquecido, suponho que
nem os moradores da rua com seu nome no bairro da Graça em Salvador sabem quem
foi ele.
Como não tenho cultura musical, sou igual a urubu,
não toco nem canto nada, mas como a memória auditiva e olfativa não são
facilmente apagadas descobri depois de velho que gostava e conhecia bossa nova
e gostava de ouvir jazz.
Durante muito tempo acalentei secretamente o desejo
de ser escritor. Queria aprender a escrever, lia os grande escritores, Machado
de Assis, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Gabriel Garcia Márquez, Dostoiévski,
Mário Vargas Llosa, Ernest Hemingway, Albert Camus, Melville, Lima Barreto,
José de Alencar, Raul Pompéia, Nelson Rodrigues, Rubem Fonseca... Li dezenas de
entrevistas de escritores, queira aprender a carpintaria, a prática do
ofício...
Foi o período em que mais descuidei da aparência,
usava umas sandálias de cangaceiro, cabelo e barbas crescidos, tinha uma força
um tanto selvagem, dormia pouco, lia o tempo todo e foi o tempo menos
atormentado de minha juventude pois nesta busca em que estava por inteiro, um
vulcão voltado para dentro, minha vida era plena de sentido.
Lia os textos procurando descobrir como tinham sido
feitos. Todos os grandes escritores ensinam alguma coisa do ofício, alguns mais
outros menos. Vargas Llosa é um dos que narram como escreve e como aprendeu em
três livros, “Conversas com Vargas Llosa”, “Peixe na Água” e “Orgia Perpétua”,
este é o desvendamento de como escrevia Gustave Flaubert.
Garcia Márquez também obsequia com ótimas dicas
quem aspira ao ofício ou simples curioso em diversos textos tais como suas
memórias, “Viver para Contar” e “Cheiro de Goiaba”. Neste consta a lição mais
prática e a mais dura.
Ele vivia em Paris no começo dos anos sessenta com
a grana que recebia como correspondente de um jornal colombiano que foi fechado
por um ditador fazendo piorar os problemas financeiros do futuro ganhador do
prêmio Nobel de literatura.
Narra Garcia Márquez que Paris é dura com a
miséria. Sem saber o que iria comer no dia seguinte e sem receber o cheque
enviado pelo jornal fechado no mês seguinte teve que deixar o hotel.
A guerra
de libertação da Argélia estava a todo vapor. Dormir na rua ou no metrô era um
problema pois seus traços fisionômicos lembravam um argelino e a polícia não
descuidava.
Um dia aconteceu: depois de uma noite insone,
cochilando no metrô, ele andava em uma das margens do rio Sena, amanhecia,
passou um sujeito e só por uma fração de segundo ele vê nitidamente o rosto do
cara, estava chorando... Ainda nesta fase ele vai para o encontro com um
possível editor e chega primeiro e sai por último porque o solado do sapato
estava soltando.
Ele já tinha escrito quatro bons livros quando
escreveu “Cem Anos de Solidão”. Estava morando no México quando o escreveu e
para enviar os originais ao editor empenhou o secador de cabelos da mulher para
pagar as despesas da postagem e já estava devendo ao padeiro e ao açougueiro.
Com este livro ganhou o Nobel e saiu da dureza.
Presenciei o próprio Jorge Amado dizer que para ser
escritor era preciso ler muito, escrever bem e ter nascido para isto. Eu
gostava de ler, poderia ter aprendido a escrever mas descobri que para isto eu
iria sacrificar quem estivesse ao meu redor, família, amigos. Recuei... Se já
estava na dureza iria mergulhar na mais absoluta pobreza pois a literatura é
mais exigente que mulher ciumenta, quer você por inteiro o tempo inteiro.
A semana passada estava mexendo em minhas caixas de
livros e lembrando desta fase de minha vida. Dela permanece ainda viva a imensa
admiração por Ernest Hemingway, o escritor cuja vida para mim era um modelo;
escrevia bem, de seus textos emanam a força selvagem da natureza, opinava em
política, boxeava, pescava, amava, bebia, estava onde estivesse uma boa causa,
era amigo de gente simples, vivia intensamente, desprezava o perigo e afrontou
algumas vezes a morte.
Às vezes mexendo em coisas guardadas bate aquela
saudade de algumas coisas tão distantes.
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