quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

       O filho ilegítimo da República

                         

Para os fins da Teoria do Estado a teoria do poder que melhor se ajusta é a que o explica como tendo origem nas relações sociais, e assim o poder pertencer à sociedade, ao povo. Sendo o povo o soberano, o real detentor do poder, aquele que o exercer sem mandato temporário é um usurpador, não o detém com legitimidade.  

O Poder Judiciário brasileiro é o único Poder da República que não está submetido aos princípios republicanos e democráticos, encontra-se acima da soberania popular - exceto o Tribunal do Júri em que a própria sociedade detém o poder de julgar -, e por decorrência todos os seus órgãos detêm o poder sem o consentimento do soberano, ilegitimamente, portanto.

Os juízos monocráticos são mais facilmente percebidos em colisão com a soberania popular à vista de que o acesso à função jurisdicional por concurso de provas e títulos não confere a nenhum juiz mandato e legitimidade para exercer um Poder da República.

Com o intuito de justificar esta aberração jurídico-política na estrutura da República assim escreveu Geraldo Ataliba:

“Isto é perfeitamente explicável à vista da circunstância de que se, efetivamente, ao Poder Judiciário incumbe – como sublinhou maravilhosamente, com excepcional didática, Aliomar Baleeiro (RTJ 44/54) - a aplicação da lei, sem maior possibilidade de agregar, nesse processo, a vontade pessoal do órgão judiciário, então a vontade do Judiciário será sempre a tradução da vontade da lei. Se a lei emana dos órgãos da representação popular, a circunstância de não serem os juízes – e nem haver necessidade disso – mandatários do povo, ao contrário de desservir às exigências do princípio republicano, serve-lhes excelentemente.” [1] (Sublinhamos)
  
Mesmo em rápida análise constata-se o manifesto contorcionismo intelectual para tentar justificar a usurpação. Já a falácia jurídica que o serve de muleta demanda lembrar alguns princípios que norteiam a aplicação das leis.

Primeiro, é princípio de hermenêutica jurídica que nenhuma lei é suficiente clara que não demande interpretação por parte do juiz[2].

Em seguida cabe aviventar que não sendo o direito uma ciência e sendo fenômeno intrinsecamente vinculado ao poder estará quem o aplique sujeito à tentação do abuso, como bem alertou Montesquieu. 

Ademais, não pode ser esquecido que o cotidiano forense ensina que de todos as técnicas de interpretação construídas pelos hermeneutas a que mais tem aplicação não está mencionado em nenhum compêndio, a interpretação de má-fé, a interpretação astuciosa de documentos e textos legais.

Se o evento não é admitido publicamente nos livros jurídicos é muito conhecido por hermeneutas de outra área: os críticos literários admitem que todo leitor tem o direito de encontrar tudo aquilo que ele mesmo põe no texto que ler.

Este é o busílis da questão: se você pensa que tem direitos porque determinada lei votada pelos representantes do povo assim vocalizou está enganado; você terá o direito que o Judiciário disser que você tem, que pode ser nenhum, depois de interpreta-la.

Por ser completamente infenso aos princípios republicanos, seus membros detêm um Poder da República sem que o povo o tenha dado; nenhuma satisfação devem a quem quer que seja, interpretam a lei como lhes aprouver, “inventam” o conteúdo das leis contra qualquer regra por mais clara e lógica que esteja em qualquer diploma; existem para mandar, serem obedecidos, sem oposição e sem contrastes de qualquer natureza, sequer doutrinária.

Filho de outra realidade, da época em que vigia o Estado escravocrata e monarquista, continuou na República substancialmente intocado, mesmo que a realidade jurídica tenha mudado e abstratamente não tenhamos mais súditos e sim cidadãos.

Por deterem um Poder da República sem que o povo o tenha dado, seus membros são tão poderosos que tal poder só encontra paralelo se comparado ao poder dos demiurgos, constatada a natureza absoluta, sem contraste, sem controle e sem oposição – quando não estão servindo a interesses bastante mundanos.  

Por enquanto os mortais vão suportando os caprichos dos deuses... Enquanto não descobrirem que são cidadãos e que vivem em uma República.


[1] ATALIBA, Geraldo. Constituição e República. 2ª ed. São Paulo, Malheiros Editores, 1998. P. 112. 
[2]Se a lei for clara é dever do magistrado interpretá-la e aplica-la, apesar de não encontrar dificuldades. Se a lei for obscura ou ambígua deverá interpreta-la empregando certa engenhosidade intelectual.”  DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. 12ª ed. São Paulo, Saraiva, 2007. P. 150.  

Um comentário:

  1. Parabéns pelo ensaio jurídico percorrendo os caminhos da Teoria Geraldo do Estado. Mas em nosso direito positivo, alicerçado no Estado Democrático de Direito, a Constituição brasileira, fruto do esforço dos constituintes eleitos, traçou os Poderes da República atribuindo-lhes competências. E ao órgão judicante, como não poderia deixar de ser, coube exercer a função nobre da imparcialidade nos julgamentos dos feitos da sociedade, não obstante, por exemplo, o STF seja um tribunal de indicação política, e por isso, hoje, muito contestado.
    Assim, entendo que o Poder Judiciário brasileiro, indiretamente, está submetido aos princípios republicanos e democráticos porque foi instituído pela Constituição Federal, a qual foi elaborada por representantes do povo. É claro que as suas decisões não se submetem ao clamor social. Ma elas não podem desobedecer aos preceitos constitucionais.

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